quinta-feira, 14 de março de 2019

Nossa vida escapa - Isadora Bersot


Cemitério dos coletes. Lesvos, Grécia

Nossa vida é um aglomerado de experiências que, por vezes, se intercruzam com as de outros. A exposição "Raiz", de Ai Weiwei, me transportou para 2016, quando estive em Moria, um campo de refugiados na ilha de Lesvos, Grécia. O artista também esteve lá e capturou imagens para o documentário Human Flow. Há, em Molyvos, um local chamado "cemitério dos coletes", onde ficam os coletes salva-vidas dos refugiados que chegam até a praia. Vendo minhas fotos, você pode reconhecer o lugar retratado nas fotos de Weiwei também.

Ver todas as que ele tirou na ilha, dos botes, dos refugiados é lembrar que a nossa vida escapa. É um constante escape. Especialmente para quem precisa fazê-lo, literalmente, para sobreviver.




Imagens de Ai WeiWei em campos de refugiados diversos

O termo "refugiado", a partir de lá, passou a ter contornos.
Sombras.
Rostos.
Nomes.
Histórias.


Objetos de marcenarias feitos pelo artista
E rever, em São Paulo, tantas fotos, objetos de marcenaria e aquele bote gigante me levou a lembrança da fuga de uma vida que não vivi, mas que sinto como se tivesse. Ler e saber de relatos de refugiados parece que me fez viver uma vida que não era minha em uma espécie de Matrix.

Confesso. Não sou muito boa com nomes. Não lembro dos daqueles que conheci. Mas seus rostos estão frequentemente em minha mente.

Aquele senhor da Tanzânia, que chegou durante a noite e, ao reencontrá-lo e cumprimentá-lo, ouvi: Como é possível ter um dia bom aqui dentro?

Relembro aquela dupla de amigos sírios que disse, após um temporal que inundou suas barracas, que voltariam para sua terra natal, pois era preferível morrer lá do que em uma outra desconhecida.

E daquela jovem síria grávida, que teve um ataque de pânico após um incêndio no campo que ceifou, ao menos, uma vida. No dia seguinte, ela aceitou uma barra de chocolate de presente, e seu filho estava bem.


Lembro de outra jovem que foi agredida e perdeu o bebê com três meses de gestação.

Há um menino muito especial. Ele sempre vinha brincar e me perguntava se eu lembrava de seu nome. A gente jogou bola. Ele conseguiu asilo em Atenas.

Lembro de uma africana que falava português e dizia não aguentar mais nenhum dia ali.

Do senhor iraquiano, muito simpático, com uma alegria infrequente, que vendia um café maravilhoso. O primeiro era de graça, para garantir o retorno.

E de muitos outros... Tantos outros...

Bote de refugiados. O tamanho é monstruoso.

Bote em tamanho real. Lesvos, Grécia.


Minhas duas semanas em Moria foram uma catarse.E eu só penso em voltar. Meu coração segue a cada dia mais apertado, sendo esmagado pelo que, para mim, são lembranças. Para eles, a própria vida.

Nada melhorou muito desde que voltei ao Brasil.
O frio mata.
A doença mata.
A solidão mata.
A guerra mata.
E cada dia a mais é um dia a menos.
Para todos nós.



Parede que conta a história
dos refugiados. Clique
para ampliar.
O que não podemos deixar morrer é a esperança. A vida de Ai Weiwei acende uma chama. Há muitos outros livres. Sobreviventes. Mas ainda há muitos mais enfrentando terra, mar, guerra, ar... para alcançar essa liberdade.

Enquanto houver outros, não podemos parar. Considere colaborar financeiramente, ao menos, com instituições que apoiam refugiados no Brasil e no mundo. Seres humanos não podem ser apenas estatísticas.


(Texto e imagens: Isadora Bersot)



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